Por Vanderlei de Lima 14/08/2011
Neste ano de 2011, foram finalistas da Copa Paulista de Futebol dois tradicionais clubes do interior: o Paulista Futebol Clube, fundado em 1909, de Jundiaí, e o Comercial Futebol Clube, nascido em 1911, de Ribeirão Preto. Desse modo, o primeiro jogo da final foi em Jundiaí e o segundo em Ribeirão.
Nossa atenção se voltou, como sempre, para a PAZ. Afinal, as duas maiores organizadas de cada time nunca se encontraram para conversarem antes, mas estavam, agora, prestes a se verem e a se reverem em lugares diferentes dentro de poucos dias. Era hora de a TOPPAZ, Torcida Organizada Pela Paz, convidar para o diálogo a Torcida Raça Tricolor, do Paulista, já ligada a nós há algum tempo, e a Mancha Alvinegra, do Comercial, em contato conosco há apenas alguns dias.
Segundo o nosso método, sempre eficaz, de ação, entramos em contatos por e- mail e telefone com os presidentes das duas organizadas a fim de garantirmos um verdadeiro acordo de paz entre elas. Não demorou para que o Rodrigo e o Carlos, da Raça, e o Wendel, da Mancha, começassem a trocar contínuos e-mails com cópias para a Toppaz ou se falar por telefone. Esses meios resultaram num excelente acordo de respeito recíproco: a Mancha estaria tranquila em Jundiaí e a Raça seria bem recebida em Ribeirão Preto.
Na certeza da palavra empenhada de ambos os lados, comunicamos ao Major Casoti, da PM de Jundiaí, que o jogo naquela cidade, no dia 16/11, seria, da parte das duas maiores organizadas de cada clube disputante, um exemplo para a Paz. E foi. De modo que, no dia seguinte à partida, a autoridade policial nos informou, por e-mail, que, conforme fora previsto, tudo correra muito tranquilamente, sem uma pequena tentativa de arruaça sequer.
No sábado, dia 19/11, no segundo jogo da final, realizado no estádio Santa Cruz, do Botafogo (o do Comercial está em reformas), em Ribeirão Preto, a mesma tranquilidade foi sentida e observada pelos torcedores, pois o pacto de PAZ, intermediado por nós, continuava em vigor e foi cumprido à risca por ambas as torcidas e, por conseguinte, pelas outras menores de cada clube.
O fato causa admiração, uma vez que estavam em cena duas torcidas que nunca tiveram bons contatos, dois presidentes que nunca se falaram, mas que, sem aliança ou amizade, no sentido que se dá a esses termos em organizadas, mantiveram o respeito recíproco dentro da sadia rivalidade e, desse modo, mostraram ao mundo que o caminho da Paz é possível, se houver boa vontade das partes envolvidas. E mais: a confiança na palavra dada e empenhada foi tão real e eficaz que a séria e, infelizmente, verdadeira constatação feita pelo promotor de Justiça Dr. Ronaldo Batista Pinto de que “O pai que pretenda levar o filho para assistir a um clássico provavelmente será identificado como insano (Estatuto do Torcedor comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 104), neste caso, em especial, caiu por terra.
Com efeito, o Wendel, presidente da Mancha Alvinegra, levou com ele para o jogo sua esposa e a filhinha deles de apenas sete meses. Daí a questão: ele seria um insano? Em algumas circunstâncias sim, mas nesta, especificamente, não. Não, pois um pacto verdadeiro de paz estava selado e seria cumprido da melhor maneira possível sem uma pequeníssima sombra de atrito entre os rivais.
Depois da partida, na qual o Paulista sagrou-se campeão, um dos ônibus da organizada Raça Tricolor teve problemas mecânicos na saída de Ribeirão Preto. Seria uma ótima ocasião para que seres humanos estúpidos travestidos de torcedores (embora talvez sem indumentárias próprias para não serem identificados) fossem lá a fim de criarem confusões com os jundiaienses na pista ou de dentro de seus carros ou de cima de suas motos passassem pelo veículo da torcida rival atirando rojões, bombas, pedras ou – pior – disparando tiros com armas de fogo. Todavia, não foi isso que aconteceu. O Wendel, presidente da Mancha, sabendo do ocorrido, dirigiu-se para lá, fardado de Mancha dos pés à cabeça, a fim de prestar assistência aos entusiastas do Paulista que conhecera – como já dissemos – há poucos dias.
Diante de tudo isso é inevitável perguntar ao (à) prezado(a) leitor(a): não é essa atitude que falta às organizadas desejosas de serem respeitadas pelo Poder Público hoje? Não está aí o verdadeiro espírito esportivo civilizado daquele que “sabe ganhar e perder com classe, com elegância”, para usarmos uma expressão preciosa aos antigos filósofos e aproveitada pela Dra Heloísa Helena Baldy dos Reis em seu livro Futebol e violência (Campinas: Armazém do Ipê/Fapesp, 1997, p. XVI)? Quem responde não a estas questões defende a torcida única, ou seja, cada uma não sai do seu estádio a fim de assistir a jogos em estádios rivais, pois não tem civilidade suficiente para frequentar a casa do outro.
Ao relatar tudo isso, prevenimo-nos de algumas críticas simplórias. A primeira delas é a que diz que no interior não há grandes rivalidades. Esse é um dos modelos perfeitos de tolice que já foi respondido em nosso artigo “Paz nas torcidas do interior e da capital”, no site Kala. E mais: não é só no Estado de S. Paulo ou no interior de alguns outros Estados brasileiros que a violência ocorre entre torcedores, haja vista que na Inglaterra nunca foi diferente. Lá, as piores notícias envolvendo os hooligans vinham da imprensa interiorana, segundo o consagrado escritor Bill Bufford em seu livro Entre os vândalos (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 223-224).
A segunda crítica é a que dirá: “Acordo entre essas duas torcidas não têm valor, elas nunca foram de pista (leia-se “de briga”)”. A essa crítica tão infundada quanto à primeira, respondemos indagando:
a) Você conhece detalhadamente a história de cada uma dessas organizadas ou a vida de cada integrante delas para saber, com precisão, o que são ou o que não são capazes de fazer? Você consegue prever, com 99% de acerto, o que um ser humano sem regras pode realizar?;
b) Na maioria das vezes, os verdadeiros brigões e dispostos a contendas são os que saem por aí se exibindo (“nas pistas” ou pela internet), espancando inocentes, fazendo covardias ou criando casos do nada? Não! Quer uma prova? Você já viu a Máfia internacional ou o crime organizado brasileiro atacar – exceto por raríssimo engano – um inocente? Criar casos gratuitamente? Leia, de Jimmy Breslin, O Traidor: a verdadeira história da Máfia americana (São Paulo: Larousse, 2008), ou estude a introdução feita por Alba Zaluar ao livro Torcer, lutar ao inimigo massacrar, de Rodrigo de Araujo Monteiro (Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 9-38) e depois nos dê a resposta.
A atitude conjunta das diretorias da Torcida Raça Tricolor e da Mancha Alvinegra não é a dos covardes ou medrosos, mas a de homens honrados que, por saberem – como grandes líderes da história souberam – do potencial das massas torcedoras que têm consigo, entendem que é preciso parar, conversar, negociar e buscar a PAZ. Afinal, neste mundo, a dignidade humana está acima de qualquer outro valor e é dever das verdadeiras torcidas organizadas preservá-la, haja vista que o maior patrimônio de uma torcida são os seus associados.
Portanto, esse gesto nobilíssimo da Mancha Alvinegra e da Raça Tricolor poderá merecer a crítica dos medíocres, mas deverá, por justiça, ser objeto de louvores de todos os sabedores de que dois grandes exércitos dificilmente desperdiçam suas forças ao vento, mas, ao contrário, por saberem do que são capazes, conversam e selam acordos, uma vez que entendem a seguinte verdade: acima da massa bruta está a inteligência, faculdade humana a ser bem usada em prol do próprio ser humano que merece ser tratado com a dignidade que o Pai celeste lhe outorgou. Parabéns! Deus seja louvado!
*Vanderlei de Lima é professor, filósofo, com curso de Extensão em Direito e Punição pela PUC-Campinas, autor de livros sobre Organizadas e dirige a TOPPAZ, Torcida Organizada Pela Paz, .